O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deu declarações polêmicas e questionáveis sobre diversos temas durante fala na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, nesta quinta-feira, 22. Apesar de apresentar alguns dados verdadeiros, o mandatário apresentou um discurso desalinhado e com algumas mentiras sobre a Amazônia, a preservação ambiental e a relação com os povos indígenas. Acompanhe:
1. "O Brasil está na vanguarda do combate ao aquecimento global": mentira
O desmatamento mensal na Amazônia voltou a crescer em março e bateu o recorde para o mês no
histórico recente do Deter, sistema de monitoramento de desmate do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), com início em 2015. Os dados da plataforma podem ser usados para observar o avanço do desmatamento no bioma.
Dados do Inpe atualizados no dia 9 de março apontam 367,61 km² de desmatamento. O recorde anterior pertencia a 2018, com 356,6 km² destruídos, seguido por 2020, com 326,49 km² derrubados. A destruição da floresta em março teve crescimento de 12,6% em relação a março de 2020, ano em que o desmatamento atingiu os níveis mais elevados dos últimos 12 anos, mesmo em meio à pandemia da Covid-19.
Segundo dados de 2019 do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), gerados com com base em imagens de satélite, as queimadas no Brasil aumentaram 82% em relação ao ano de 2018, se compararmos o mesmo período de janeiro a agosto. Esta é a maior alta e também o maior número de registros em sete anos no País.
2. "O Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa mesmo sendo uma das maiores economias do mundo. No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais": parcialmente verdade
Segundo o Our World in Data, painel de dados da Universidade Oxford, muitos dos grandes emissores mundiais de gases do efeito estufa hoje, como Índia e Brasil, não são grandes contribuintes em um contexto global, devido ao atraso da industrialização nesses países.
No caso, o Brasil é responsável por 0,92% das emissões globais na série histórica, que vai de 1751 até 2019 — embora só haja dados disponíveis do país a partir de 1901.
A curva de emissão no país começou a subir por volta da década de 1950 e hoje os números são preocupantes. Ainda de acordo com o painel, o Brasil foi responsável por 1,28% das emissões em 2019, o que corresponde a 465 milhões de toneladas de CO² emitidas.
Segundo um relatório divulgado em novembro do ano passado pelo Observatório do Clima, o Brasil foi o quinto maior emissor de gases do efeito estufa em 2019. Ao todo, o país emitiu 2,17 bilhões de tCO² (toneladas de CO² equivalente) no primeiro ano do governo Bolsonaro.
3. "Apesar das limitações orçamentárias do governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização": mentira
Um ofício do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade) divulgado na semana passada aponta que o órgão, ligado ao Ministério do Meio Ambiente e responsável por unidades de conservação federais, enfrenta severas restrições financeiras. Segundo o documento, a partir de maio, as brigadas de incêndio devem ser fechadas e a medida pode prejudicar os trabalhos de prevenção e combate a incêndios florestais.
No Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles reduziu o poder de multa de fiscais do órgão, o que levou funcionários a denunciarem a paralisação total de autuações por crimes ambientais. Ele também exonerou as chefias regionais de quatro estados (AM, BA, PB e TO) e nomeou uma advogada com experiência em anular infrações ambientais para a Superintendência do Acre.
4. "Promovemos uma revolução verde no campo": mentira
No dia 5 de fevereiro de 2020, em declaração irônica durante um evento de promoção dos 400 dias de governo, no Palácio do Planalto, Bolsonaro disse que, se pudesse, "confinaria" os ambientalistas na Amazônia, já que "eles gostam tanto de meio ambiente". A fala aconteceu no mesmo dia em que o mandatário assinou um projeto de lei para regulamentar a mineração, produção de petróleo, gás e geração de energia elétrica em terras indígenas. A medida foi derrubada no Congresso Nacional.
5. Brasil conserva 84% do bioma amazônico. Como resultado, somente nos últimos 15 anos evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera: verdadeiro
Embora a cobertura original da floresta amazônica seja de 83%, apenas um ponto percentual abaixo do declarado por Bolsonaro, 42% do desmatamento ocorreu só nos últimos 20 anos, segundo dados do Inpe. De acordo com o instituto, o desmatamento na Amazônia aumentou 9,5% no Brasil no último ano, atingindo o pior nível anual desde 2008 na região.
Nos últimos 15 anos, de fato, o Brasil deixou de emitir mais de 8,3 bilhões de gases de efeito estufa, de acordo com dados do Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa), mantido pelo Observatório do Clima.
No entanto, entre 2018 e 2019, houve aumento de 9,6% nas emissões de gás carbônico no país. Levantamentos apontam que o crescimento se deve, justamente, à devastação na Amazônia. Em maio do ano passado, estimativa do Seeg já apontava que o maior índice de desmatamento colaborava com o aumento de emissões de carbono, mesmo que diante da pandemia de covid-19 houvesse queda em todo o mundo em função do isolamento social.
6. "Promover esforço que contemple os interesses de todos os brasileiros, inclusive indígenas": mentira
Durante a campanha presidencial, Bolsonaro disse que não demarcaria nenhuma terra indígena se fosse eleito — e tem cumprido a promessa. Disse ainda que buscaria reduzir áreas já demarcadas, o que ainda não fez. Bolsonaro já defendeu entregar os títulos das terras para as comunidades para que elas possam negociá-las — a medida, porém, exigiria uma mudança constitucional.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE, há 817,9 mil indígenas no Brasil — 0,4% da população total do país. É por isso que Bolsonaro costuma dizer que "há muita terra para pouco índio no Brasil".
Bolsonaro defende que as terras indígenas sejam abertas para atividades econômicas de grande escala, como a mineração e o agronegócio. Em várias ocasiões, ele afirmou que os indígenas não podem "continuar sendo pobres em cima de terras ricas", referindo-se principalmente aos depósitos minerais presentes em territórios indígenas na Amazônia.
Em setembro de 2019, ao discursar na Assembleia Geral da ONU, o presidente afirmou que "algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil, apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas".
Em 2020, Bolsonaro assinou um projeto que regulamentava a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas. A iniciativa foi ao encontro de declarações do presidente, que desde a posse defende o aproveitamento econômico de territórios indígenas. A medida foi derrotada na Câmara dos Deputados.
O número de invasões a terras indígenas no país explodiu durante os nove primeiros meses do governo Bolsonaro, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Em todo o ano de 2018, segundo o Cimi, foram registrados 111 casos do tipo em 76 terras indígenas. Somente de janeiro a setembro de 2019, o número pulou para 160 invasões em 153 terras indígenas.
Faltando três meses para encerrar 2019, houve um aumento de 44% no total de ataques e de 101% no de terras atingidas.
Leia o discurso de Bolsonaro durante a Cúpula do Clima na íntegra:
Senhores Chefes de Estado e de Governo, Senhoras e Senhores,
Agradeço o convite para participar desta Cúpula de Líderes. Historicamente, o Brasil é voz ativa na construção da agenda ambiental global. Renovo, hoje, essa credencial, respaldada tanto por nossas conquistas até aqui quanto pelos compromissos que estamos prontos a assumir perante as gerações futuras. Como detentor da maior biodiversidade do planeta e potência agroambiental, o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global. Ao discutirmos mudanças no clima, não podemos esquecer a causa maior do problema: a queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos dois séculos.
O Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa, mesmo sendo uma das maiores economias do mundo. No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais. Contamos com uma das matrizes energéticas mais limpas, com renovados investimentos em energia solar, eólica, hidráulica e biomassa. Somos pioneiros na difusão de biocombustíveis renováveis, como o etanol, fundamentais para a despoluição de nossos centros urbanos. No campo, promovemos uma revolução verde a partir da ciência e inovação. Produzimos mais utilizando menos recursos, o que faz da nossa agricultura uma das mais sustentáveis do planeta. Temos orgulho de conservar 84% do nosso bioma amazônico e 12% da água doce da Terra. Como resultado, somente nos últimos 15 anos evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera. À luz de nossas responsabilidades comuns, porém, diferenciadas, continuamos a colaborar com os esforços mundiais contra a mudança do clima. Somos um dos poucos países em desenvolvimento a adotar, e reafirmar, uma NDC transversal e abrangente, com metas absolutas de redução de emissões inclusive para 2025, de 37%, e de 40% até 2030. Coincidimos, Senhor Presidente, com o seu chamado ao estabelecimento de compromissos ambiciosos.
Nesse sentido, determinei que nossa neutralidade climática seja alcançada até 2050, antecipando em 10 anos a sinalização anterior. Entre as medidas necessárias para tanto, destaco aqui o compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal. Com isso, reduziremos em quase 50% nossas emissões até essa data. Há que se reconhecer que será uma tarefa complexa. Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização. Mas é preciso fazer mais. Devemos enfrentar o desafio de melhorar a vida dos mais de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, região mais rica do país em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano. A solução desse "paradoxo amazônico" é condição essencial para o desenvolvimento sustentável da região. Devemos aprimorar a governança da terra, bem como tornar realidade a bioeconomia, valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade. Esse deve ser um esforço, que contemple os interesses de todos os brasileiros, inclusive indígenas e comunidades tradicionais. Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas. Neste ano, a comunidade internacional terá oportunidade singular de cooperar com a construção de nosso futuro comum.
Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recursos e investimentos para impulsionar a ação climática, tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia, como indústria, geração de energia e manejo de resíduos. Da mesma forma, é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta, como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação. Estamos, reitero, abertos à cooperação internacional. Senhoras e senhores, como todos, reafirmamos em 92, no Rio de Janeiro, na conferência presidida pelo Brasil, o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que a resposta equitativamente e de forma sustentável às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras. Com esse espírito de responsabilidade coletiva e destino comum, convido-os novamente a apoiar-nos nessa missão. Contem com o Brasil.
Fonte: O Povo Online