Há menos de um mês, no dia 25 de novembro, o cadáver de uma mulher foi encontrado boiando em uma das margens do Rio Cocó, numa área nobre de Fortaleza. O corpo apresentava diversas marcas de perfuração. E estava sem cabeça. Casos como esse, que chamam atenção pela crueldade, chocam não só quem lê as notícias, mas afetam diretamente os agentes de segurança pública que atendem as ocorrências do tipo. Embora venham caindo, decapitações e esquartejamentos se tornaram atos perversos de assinatura de grupos criminosos que atuam no Ceará.
A reportagem solicitou um levantamento estatístico à Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce), sobre a quantidade de decapitações registradas pelo órgão, entre 2017 e 2019. Em resposta, o órgão informou que não dispõe de dados específicos sobre esses casos. No entanto, uma lista elaborada pelo Sistema Verdes Mares com base em notícias de crimes no mesmo período contabilizou, pelo menos, 41 pessoas decapitadas no Estado, nos últimos três anos.
Em 2017, foram registrados 14 casos. Já em 2018, o número subiu para 25. Em 2019, o caso da mulher no Cocó se soma ao de Lucas Emanuel de Oliveira, decapitado em Caucaia, no mês de outubro. A cabeça dele estava dentro de uma mochila ao lado do corpo. Do total de vítimas, 28 eram homens, dez eram mulheres, e três não tiveram o sexo identificado. A maioria das decapitações ocorreu em Fortaleza e em municípios da RMF, como Caucaia, Aquiraz, Pacatuba, Maracanaú e Eusébio. No interior, houve registros em Catunda, Quixeramobim e Palmácia.
Uma fonte da Polícia Civil do Estado do Ceará (PCCE)que investiga facções criminosas lembra que, em 2017, era comum o compartilhamento de vídeos do tipo via aplicativos de conversa; contudo, afirma que os casos caíram. Para ela, era uma "atuação violenta como forma de intimidar a Polícia e as outras organizações criminosas rivais". "Eles faziam questão de agir como grupos terroristas, como a Al Qaeda e Estado Islâmico, que filmam aquelas mortes", explica o profissional.
Humanidade?
Um dos casos mais emblemáticos ocorridos em Fortaleza foi o de três mulheres torturadas, assassinadas e decapitadas em área de mangue do bairro Vila Velha, em março de 2018. Chocantes, os vídeos foram compartilhados nas redes sociais. Segundo o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), foi ordenado aos réus que as execuções seguissem o modelo "Estado Islâmico", em alusão ao grupo extremista sírio-iraquiano.
"Na realidade, eles queriam evoluir para um cenário de terrorismo, que é acima do crime organizado. Aqui no Estado, a gente teve a época das gangues; depois, evolui-se pro crime organizado e eles tentam, mirando outros países do Oriente Médio, intitular-se terroristas", analisa a fonte da Polícia Civil.
Para Reginauro Sousa, presidente da Associação dos Profissionais da Segurança (APS), na sanha de ganharem status dentro da facção, alguns membros exibem "essa crueldade sem limites, sem nenhuma dose de humanidade, sem piedade nenhuma". "É a volta à barbárie, ao mais absurdo estado primitivo", considera. E ninguém está imune à percepção dessa crueldade. Segundo Sousa, até os profissionais são afetados, ainda que, por vezes, tentem esconder os sentimentos.
"Os efeitos psicológicos desse tipo de situação são silenciosos. Muitas vezes, o militar, por obrigação da farda, da função que ele ocupa, acaba tentando transparecer uma insensibilidade a esse tipo de problema, como se aquilo não mais o afetasse, mas não podemos nos tornar alheios à dor", afirma Reginauro, lembrando que, nessas situações, "não tem como não ser remetido à sua própria vida cotidiana" e aos familiares.
Na leitura do professor Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), além de sujeitar o outro a uma "dor terrível", decapitar é uma maneira de "destruir sua dignidade por meio da separação de seus membros, gerando efeitos em toda comunidade da qual a vítima faz parte", principalmente naquelas dominadas pelos grupos criminosos.
Enfraquecimento
Além disso, o pesquisador pondera que essa violência como "forma de linguagem" compõe "um sistema de vingança que se reproduz diante da omissão do Estado em promover outras sociabilidades e soluções para os conflitos que percorrem, sobretudo, as periferias".
"Infelizmente, as instituições públicas fracassam em não saber ler os códigos e propor soluções para uma situação que afeta, sobretudo, pessoas negras, pobres, mulheres, crianças, entre outros", avalia Paiva.
Reginauro Sousa, presidente da APS, também nota a queda no número de homicídios e de crimes cruéis, ainda que "as facções continuem presentes, continuem fortes". "Reduzimos os índices, mas ainda não resolvemos a guerra", diz. A fonte da Polícia Civil ressalta que a contenção do problema passa pelo enfraquecimento do poderio financeiro dos grupos criminosos.
"Isso tem diminuído justamente porque a gente tem enfraquecido o lado financeiro das organizações criminosas. Estamos dando o recado. Quando você prende os líderes, fica o recado para os que estão aqui: 'se fizer, vai ser preso'. Tenho certeza, até pelos números de redução de homicídios, que nós estamos conseguindo diminuir esses crimes praticados de forma cruel".
Com informações Diário do Nordeste